ENTREVISTA COM ANALICE MARTINS

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Internacionalista e youtuber compartilha a experiência de construir uma carreira internacional

Em entrevista ao What’s Rel?, a internacionalista Analice Martins trata dos desafios que enfrentou para iniciar a carreira. Mostra foco, racionalidade e estratégia nas decisões que tomou para atingir seus objetivos profissionais. Fala também da experiência de produzir um canal no Youtube e, dentre outros temas, comenta a importância do trabalho voluntário.

Comunicativa. Essa é sem dúvida uma das mais visíveis características da analista internacional Analice Martins, que o What’s Rel? teve o prazer de entrevistar neste mês de setembro.

Bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP-SP), ela produz o canal Internacionalidades, no Youtube, no qual comenta suas experiências profissionais no setor privado e em organismos internacionais, além de compartilhar dicas sobre carreira e mercado de trabalho na área de Relações Internacionais.

Analice fez especialização em Administração de Empresas e Gestão Ambiental (MBA) pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e recentemente concluiu um programa de mestrado em Ciências Ambientais, Comunicação e Política na Universidade de Södertörns em Estocolmo, Suécia. Estagiou na ONU, em Nairóbi, no Quênia, e atualmente é Assistente de Comunicação junto a um centro internacional de pesquisa do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em Brasília.

Dedicada a trabalhar em organismos internacionais com foco em desenvolvimento, Analice lamenta o fato do Brasil estar sub-representado nessas organizações, mas é otimista com relação ao futuro. “Precisamos de mais e mais jovens engajados nas questões globais de política e comércio para poder apagar essa imagem do Brasil como um anão diplomático”, diz. Confira mais detalhes na entrevista abaixo.

Analice, você trabalhou na ONU – Habitat, o mais importante programa da ONU para desenvolvimento urbano. Conte para gente como você chegou a esse trabalho e como foi o processo para ingressar nele.

A primeira vez que tive contato profissional com o Programa foi em 2009 quando estagiava no Conselho de Comércio Exterior da Suécia (Swedish Trade Council – hoje Business Sweden). Estávamos organizando o primeiro seminário no Brasil da iniciativa de desenvolvimento urbano sustentável chamada SymbioCity e eu tive de telefonar para a sede do ONU-Habitat em Nairóbi e confirmar uma presença chave em nosso evento. Não preciso dizer como fiquei nervosa, né? Depois, já formada em 2012, participei da organização do painel “Attractive Cities” no Pavilhão da Suécia no evento da ONU Rio + 20. Durante esse evento tive a chance de fazer contatos cruciais para o meu trabalho em Estocolmo em 2013. Durante um ano e três meses trabalhei para uma empresa sueca de tecnologia que almejava implantar um centro de cooperação para cidades em João Pessoa, Paraíba. Assim, quando vi a vaga de estágio na ONU-Habitat no site UNCareers, tive certeza de que minha experiência profissional e a proficiência em inglês e português (requeridos na vaga) me tornavam uma candidata forte. Não deu outra! (risos)

Você teve que se mudar para Nairóbi, uma escolha que às vezes pode ser difícil, não é? Como foi sua experiência no Quênia? O que há de positivo e negativo?

Com certeza! Principalmente depois de estar morando tanto tempo em um país como a Suécia, a vida no Quênia no início foi cheia de desafios. Todos os “não-africanos” (com exceção dos asiáticos) são chamados de “muzungo”, o equivalente ao “gringo” no Brasil. Por esta razão, os preços para nós são sempre muito mais altos: alimentação, moradia, transporte, lazer… tudo custa muito caro! E isso dificulta muito a vida principalmente dos estagiários que não recebem nenhuma ajuda de custo da ONU. O transporte público em Nairóbi é bastante complicado e muitas vezes perigoso, então a opção é rachar corridas de Uber ou pegar carona. Mas nós de São Paulo (ou do Brasil) já temos uma boa noção de perigo, acho que brasileiros em geral são “street smart” by default! (risos). Portanto, eu não tive nenhum problema com segurança em Nairóbi, só tive boas experiências! As pessoas são extremamente cordiais. Adorei trabalhar com colegas do Quênia e muitos se tornaram amigos de verdade. Nairóbi é um hub Leste Africano. Muitas organizações internacionais e humanitárias têm escritórios na cidade, tais como: Ofxam International, Plan International; International Organization for Migration, One Acre Fund, Cruz Vermelha etc. A sede da ONU em Nairóbi é a única no Sul Global e é casa da ONU-Habitat e PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Acredito que Nairóbi seja uma experiência essencial para aqueles que querem percorrer uma carreira humanitária ou internacional.

Você poderia nos contar um pouco de como foi o seu trabalho, suas funções e responsabilidade?

Eu estagiei no Escritório Regional para África, na sede do ONU-Habitat. Contudo, minhas atividades tinham como objetivo o fortalecimento e disseminação da instituição chamada DiMSUR – Technical Centre for Disaster Risk Management, Sustainability and Urban Resilience. O DiMSUR é um centro criado através de uma parceria entre 4 países da África Austral: Moçambique, Madagascar, Cômoros e Malaui. O UN-Habitat é um facilitador deste centro. Minhas principais responsabilidades eram na área de comunicação e financiamento (fundraising). Uma de minhas primeiras tarefas foi revisar o site de nosso projeto e propor melhorias. Também trabalhei para a disseminação do primeiro boletim informativo da instituição bem como a criação de páginas nas principais Mídias Sociais, tais como Facebook, Instagram, Twitter etc. As atividades que mais gostei de contribuir foram a elaboração do Plano de Comunicação e uma apresentação institucional e reunião com potencial parceiro estratégico. Sempre gostei da matéria “Estratégia de Empresas” e constatei que as lições do MBA puderam ser aplicadas durante o estágio na ONU.

Como o curso de RI e as habilidades desenvolvidas por um analista internacional foram importantes para o desempenho do seu trabalho na ONU?

Eu acredito que a ONU oferece oportunidades e precisa de pessoas com as mais diversas habilidades, por isso eu sempre insisto que há chances para todos, mesmo os que não estudaram Relações Internacionais. No meu caso, a ênfase do curso de RI que escolhi foi de negócios, a ideia era formar “Diplomatas Corporativos”. Consequentemente, meus primeiros anos de trabalho foram ligados à inciativa privada, por isso escolhi ingressar no curso de MBA um ano e meio depois de formada. Contudo, independentemente da ênfase do curso, acredito que os internacionalistas já possuem várias vantagens competitivas em relação aos demais profissionais, cito-as: facilidade/ interesse em aprender novos idiomas; tolerância/ respeito por diferentes culturas; bom conhecimento de história (nacional e mundial); polivalência (somos verdadeiros “faz-tudo”) e visão abrangente sobre várias áreas do conhecimento (Direito, Línguas e Literatura, Artes, Economia, Comércio Internacional, Sociologia, História, Geografia etc) não dá pra ficar sem assunto quando se senta à mesa com um internacionalista! (risos)

Gostaríamos de conhecer melhor sua trajetória profissional antes da ONU. Quais foram seus outros trabalhos?

Quando ingressei no curso de Relações Internacionais em Fevereiro de 2006 eu tinha um único objetivo: ser aprovada no concurso público do Itamaraty e me tornar Diplomata. Por isso, já em 2005, no último ano do colegial e com 16-17 anos eu comecei os cursos de francês e espanhol (já estudava inglês desde os 12 anos). Contudo, eu estava ciente da dificuldade que os internacionalistas tinham em encontrar uma colocação profissional caso não fossem aprovados no concurso, por isso eu optei por um curso de graduação que me abrisse as portas do mundo corporativo, como explicado na resposta anterior. Foi assim que consegui meu primeiro estágio no Conselho de Comércio Exterior da Suécia (Swedish Trade Council –STC) em 2009, quando estava no último ano do curso. Assim que me formei decidi morar em Paris e aperfeiçoar meu francês, também participei de dois cursos do Mestrado em Ciências Políticas como aluna ouvinte na École des Hautes Études en Science Sociales (EHESS). Quando retornei ao Brasil me senti muito perdida! Fiz uma entrevista na Câmara de Comércio França-Brasil, mas não fui selecionada. Fiquei um tempo trabalhando como professora de inglês até que meus ex-colegas do STC me ofereceram uma oportunidade em um centro de inovação que estava sendo criado pela empresa sueca Saab AB. Foi assim que retornei ao mercado de trabalho em maio de 2011 como Analista de Comunicação e Relações Institucionais. Essa posição me levou até Estocolmo em janeiro de 2013 onde trabalhei por um ano e três meses na Saab AB com um projeto de cidades inteligentes e sustentáveis em parceria com a prefeitura de João Pessoa e o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento – BID. Quando esse projeto terminou eu decidi ficar na Suécia. Por ter cidadania portuguesa e ter trabalhado e pagado impostos por mais de 12 meses no país descobri que poderia fazer o mestrado sem custos e ainda receber uma ajuda financeira do governo. Porém, no semestre que deveria iniciar o curso, fui selecionada para o estágio na Missão do Brasil junta à ONU em Nova York (Setembro de 2014). Decidi trancar o curso e passar quatro meses na Big Apple. Foi a melhor escolha que fiz! Pude cumprimentar o Secretário-Geral Ban Ki-moon e ver pessoalmente líderes globais da política internacional! Retomei os estudos do mestrado em janeiro de 2015 e os finalizei em junho de 2016, quando já estava no estágio em Nairóbi. Em Nairóbi participei do processo seletivo para uma vaga de Assistente de Comunicação junto a um centro internacional de pesquisa do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) aqui em Brasília. Este é meu cargo atual!

Analice, você já se envolveu em diversos projetos sociais, não é mesmo? Poderia nos contar essas experiências?

A questão social, o pensar no outro, sempre me acompanhou desde novinha. Um episódio muito marcante aconteceu quando ainda estava no “prézinho” numa escola de educação infantil da prefeitura, no bairro onde cresci. Fazia muito frio naquela manha e também chovia muito quando meus pais vieram me buscar, de carro. Foi quando vi um coleguinha de escola andando na chuva com a mãe, só de chinelo e uma camisetinha. Aquilo me deixou muito triste e eu não entendi porque eu tinha botas e roupas quentes e estava sendo levada para casa de carro enquanto meu amigo de classe passava por aquela situação. Apesar de ter esse sentimento, demorou algum tempo até que decidisse que a questão social seria o principal foco do meu trabalho. Você sabe, quem estuda RI pode seguir diferentes caminhos, o mais clássico de todos é trabalhar com Paz e Segurança. Mas quando descobri o mundo do desenvolvimento, principalmente o sustentável, eu senti o coração bater mais forte! Foi aí que decidi levar a minha carreira para essa direção. Ainda estou num processo de construção profissional, mas acho que sempre estaremos, não é mesmo?

Como você acha que o trabalho voluntário tem agregado positivamente na sua vida profissional? Você considera importante que os internacionalistas façam trabalho voluntário?

Certamente ajuda muito, tanto na área de organizações internacionais quanto no setor privado. A pessoa que faz um trabalho voluntário e qualificado demonstra possuir algumas características caras aos empregadores: pró-atividade, criatividade, dedicação, iniciativa, comprometimento, trabalho em equipe, tolerância e uma visão de mundo abrangente. As pessoas não sabem como isso é importante no CV! No meu caso, acabei fazendo o trabalho voluntário apenas em 2015 quando passei 4 semanas na Índia. Se pudesse, teria feito antes. Mas ainda assim tive a certeza que essa experiência foi fundamental para a minha seleção tanto no processo seletivo da ONU-Habitat como para o contrato de emprego aqui no PNUD em Brasília. Minha dica é façam trabalho voluntário um quanto antes e quantos puderem! Mas estejam atentos para a questão da competência e formação necessárias para se realizar aquelas tarefas. É um trabalho! Não vá dar aulas de inglês no Camboja se você ainda está no nível A2, por exemplo! Pense: eu poderia desenvolver essa atividade em meu país? Estou capacitada para tal? Se a resposta for sim, vá em frente! O mundo precisa de pessoas dispostas a dedicar seu tempo e energia – os bens mais valiosos que temos – a pessoas  e causas. Uma vez li uma frase que dizia algo mais ou menos assim: “sabe por que os voluntários não são pagos? Porque o trabalho que eles desenvolvem não tem preço!”.

Em paralelo ao seu trabalho, você produz um canal no Youtube e uma Fanpage no Facebook com dicas de trabalho em Relações Internacionais, o Internacionalidades. Como surgiu essa ideia e como tem sido sua experiência com o público de RI?

A ideia surgiu depois da leitura de um livro “Organizações Internacionais” do Professor Gilberto M. A. Rodrigues, da Universidade Federal do ABC. Nele, o professor lamenta o número pequeno de brasileiros trabalhando nas OIs e dá destaque à história do grande Sérgio Vieira de Mello. Eu também estava em um momento de busca e recolocação profissional. Queria mudar de setor e passar a atuar em organizações internacionais e humanitárias, por isso passei a ler e ver muitos vídeos com dicas profissionais. Decidi então compartilhar essa minha “saga” com outros brasileiros (e falantes da Língua Portuguesa), pois percebi que não havia ainda nenhum canal do YouTube focado no assunto! Gostaria de poder dedicar mais tempo aos vídeos, mas conciliar a vida pessoal com a profissional já é um desafio diário, principalmente quando se opta por morar em vários lugares do mundo.

Analice fala sobre as vantagens e desvantagens do profissional de RI no vídeo “Vida Internacional: Dores e delícias!” do canal Internacionalidades.

Você acha que o estudante e profissional de RI é carente de informação sobre carreira? O que tem a nos dizer sobre isso?

Certamente. Principalmente no Brasil. É muito triste que um país de dimensões continentais e com uma população de mais de 200 milhões de pessoas ainda seja sub-representado em organizações que decidem o futuro da humanidade! Percebo que em outros países, mesmo os em desenvolvimento como no caso o Quênia; os universitários têm uma visão muito mais internacionalizada e um engajamento social e humanitário muito maior que os jovens daqui. Quando visitei as escolas em Mumbai, fiz uma apresentação sobre a ONU, surpreendeu-me o fato de que grande parte dos alunos (entre 12 e 15 anos) tinha bastante conhecimento sobre a organização. Infelizmente, o Brasil promove muito pouco a agenda internacional e dá pouca importância aos profissionais dessa área. Mas sou otimista e vejo mudanças! Acredito que as pessoas não devam desistir do curso de RI ou desanimarem. Muito pelo contrário, precisamos de mais e mais jovens engajados nas questões globais de política e comércio para poder apagar essa imagem do Brasil como um “anão diplomático”.

Quais dicas você daria para os internacionalistas que, como você, desejam trabalhar na ONU ou em outra OI?

Serei bem sincera: não é uma escolha fácil. É preciso muita persistência e foco. Não adianta atirar para todos os lados. É preciso encontrar uma ou duas áreas de interesse e realmente investir nelas: através de cursos de pós-graduação, especialização, estágios e outras experiências profissionais. Eu senti isso tudo na pele! Como minha carreira inicial me levou, automaticamente, para o setor privado, foi difícil mudar o foco da minha carreira para a área de desenvolvimento e organizações internacionais. Foram mais de dois anos entre estudos, estágios e pesquisas para conseguir a posição remunerada que tenho hoje (alcançada há menos de dois meses) no PNUD. Minha dica inicial é essa: foco! Encontre sua área de interesse e leia, estude, faça estágio e seja um expert. A ONU precisa de pessoas com experiência. Por isso, muito dificilmente os jovens brasileiros iniciarão suas carreiras na organização. O posto que tenho hoje deve-se muito à experiência que tive na área de comunicação e parcerias no setor privado! Outra dica é investir no aprendizado de idiomas, sobretudo os oficiais da ONU. Outra dica importante é cursar um Mestrado ou uma Pós. Minha dica final é não cultivar uma visão ingênua sobre a organização, a ONU é uma instituição como tantas outras: cheia de coisas positivas e negativas. Uma habilidade fundamental para ser bem sucedido hoje é saber gerenciar as expectativas e ter uma visão realista do mundo. Mas sem deixar de sonhar, é claro! Quando se deixa de sonhar, se deixa de viver! Beijos a tod@s!

Leia também:

Artigo da Analice Martins – As 8 dicas mais importantes para começar a trabalhar em Organismos Internacionais

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